Estudar? Só se fosse o que dizer para convencer alguém a comprar bala na porta do cinema. Se pintasse a grana, todo mundo se alimentava. Caso contrário, o jeito era se virar com os restos de comida deixados na encantadora Copacabana. Negro, pobre, filho de mãe solteira e pedindo esmola por aí. A "sentença de vida" durou mais de uma década, até que a oportunidade apareceu.
Atualmente conhecido como Dodô, Luiz Paulo Hilário não seguiu o caminho para qual o destino tentou o empurrar por anos e trocou as ruas pelos campos internacionais. Nesta quinta-feira, o atacante entrará em campo para defender o Qabala, do Azerbaijão, na partida contra o Panathinaikos, pelo playoff da Europa League - o país é asiático, mas disputa competições europeias.
Em uma reviravolta que parecia improvável, o agora jogador de futebol aplicou um drible desconcertante nas estatísticas e livrou-se de um passado que teve de tudo um pouco, quase sempre da forma mais triste. Uma história que não deve em nada para qualquer filme de drama: com crime, preconceito e superação.
Nascido no Rio de Janeiro em 1987, Dodô trabalhava vendendo doces na porta do cinema desde que passou a entender um pouco mais sobre a vida. Filho de Maria da Graça, o garoto tinha oito irmãos, alguns entregues a outras famílias por falta de condições e outros já adultos, sem qualquer laço familiar.
"Minha primeira casa foi a rua. Morei mais nela do que em qualquer outro lugar com a minha mãe e com meus irmãos. Vendíamos bala na porta de cinema e pegávamos lavagem no final do expediente, restos de comida dos mercados de Copacabana. Quando dava meia-noite eles já fechavam e botavam a caçamba para fora. A gente recolhia os restos de lá", diz em entrevista ao ESPN.com.br.
"Minha mãe educou a gente mesmo não tendo educação de uma família normal, com escola e casa. Ela soube lidar com tudo e a nossa escola foi a vida. A cada dia acordávamos no meio da rua, vendendo doces, tomando conta de carros, pedindo dinheiro. Muitas vezes só conseguíamos comer graças a ajuda de alguém que pagava."
Não bastassem todas as dificuldades impostas pelas precárias condições, o menino ainda teve que conviver com o forte preconceito. No sufoco, Maria da Graça conseguiu um barraco na comunidade Pavão Pavãozinho, entre Ipanema e Copacabana. Mas o que poderia ser o rascunho de um lar desmoronou pouco tempo depois.
A mãe de Dodo foi presa pouco tempo depois, acusada de furto, e ele passou três anos morando de favor na casa de amigos do morro para não ficar largado.
"Uma vez minha mãe vendia doces em um cinema, e eu tomava conta dos carros lá. Indo para casa um dia eu pedi a ela para comprar um sorvete. Então, paramos em carrinho. Uma senhora estava na frente dela e foi pagar um sorvete, mas o problema foi que o vale transporte dela sumiu. Como a minha mãe recebia muito vale de pagamento pelos doces e outras coisas, a senhora a acusou minha mãe de ter roubado. Então, minha mãe foi presa e ficou quase três anos na cadeia", revela.
Foi assim, sem companhias, que o garoto descobriu todas as formas de exclusão. Ir até a lanchonete era ter a certeza de que as pessoas olhariam desconfiadas. Mas ainda havia a chance de entrar, diferentemente do cinema, que, pelo menos para ele, exigia "roupa adequada" e corte de cabelo.
A única diversão garantida era o futebol no morro.
De Bangu para a Europa?
Outro tombo veio quando dona Maria da Graça deixou a prisão. O barraco no Pavão Pavãozinho já estava ocupado por outra pessoa, e sua família foi despejada. Um novo lar foi construído após sua mãe se casar pela segunda vez, mudar para Bangu e ter mais três filhos.
No humilde bairro carioca a vida deu uma trégua para Dodô. Já longe das ruas, o garoto começou a se destacar como jogador em escolinhas gratuitas. Aos 11 anos, veio uma chance na base do Vasco, que não deu certo.
Quatro anos mais tarde apareceu uma grande oportunidade. O então adolescente Dodô trabalhava em uma barraca de praia e usava o tempo livre para jogar futebol nas areias da Copacabana. Foi assim, de forma quase despercebida, que um empresário notou a habilidade do jovem e o levou para um teste na Espanha.
"Fui bem e o pessoal do Hércules queria me contratar, mas meu empresário não deixou assinar porque achou que o time era muito pequeno. Tentamos o Barcelona B e não deu certo porque não tinha espaço, já que eles tinham jogadores do mesmo nível", diz.
"Caridade" do tráfico e crime
A frustração na Europa só não foi pior do que o retorno ao Brasil. Pouco tempo depois, dona Maria da Graça morreu. Sem espaço na minúscula casa da irmã, que se virava para criar os sete filhos, e sem laços com os demais familiares para pedir moradia, Dodô foi acolhido por um traficante de uma comunidade carioca.
Foi no morro que o garoto conheceu outra face da dura realidade: drogas e crime.
"Eu vi muita coisa. Cheguei a fumar maconha e usar ecstasy, mas nunca cheirei pó nem nada. Nunca me envolvi com o tráfico e nem tinha coragem de fazer nada, não podia me meter nos assuntos dele porque tinha que respeitar a vontade deles", revela.
"Por duas vezes eu roubei e me arrependo muito cada vez que eu me lembro disso. Não sou de pegar nada de ninguém, nunca fui. Foram as piores coisas da minha vida, mas, graças a Deus, nunca mais me envolvi com isso."
Padrinho Eduardo da Silva e o estrelato
Tudo parecia perdido para o já adulto Dodô quando apareceu uma última esperança de ingressas no mundo da bola. O atacante indicado para um teste em uma vaga como zagueiro do modesto Juventus de Realengo e foi aceito no time. Em seguida, veio a passagem pelo Ceres, que mudou de vez o caminho do jogador.
No clube carioca, ele foi companheiro de time de Bruno, irmão do centroavante Eduardo da Silva, e conheceu Narley Lopes, grande amigo da família. A relação com o astro naturalizado croata a deu a Dodô a chance de atuar na Croácia. E nunca mais a vida foi a mesma.
O sucesso começou a aparecer no Dinamo de Zagreb, onde brasileiro conquistou dois títulos antes de chegar ao Qabala e virar ídolo no Azerbaijão, tendo a chance de disputar o segundo maior torneio da Europa, algo que parecia impossível há pouco tempo.
"Estou aqui há quase cinco anos e devo me naturalizar em breve para jogar pela seleção, seria um sonho. O pessoal aqui pede para eu defender a seleção", comemora.
Rua, fome, restos e preconceito. Desde pequeno, Dodô aprendeu a fórmula de sobrevivência de muitas crianças espalhadas pelo Brasil. Se dependesse da bondade de um país cada dia mais intolerante, o hoje jogador de futebol dificilmente estaria em liberdade atualmente para contar sua própria história. Mais do que isso, estaria impossibilitado de ajudar outras crianças a conquistarem o que ele não teve até os 21 anos: uma chance.
"Agora estou com um projeto de ajudar crianças da Vila Kennedy por meio do teatro. O projeto chama ‘Nós por Nós'. Estou para ir ao Brasil e fazer um evento com eles. Quero retribuir tudo o que eu consegui para que elas tenham mais oportunidades na vida e queremos ajudá-las."
ESPN UOL
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