21/03/2015

Um ano depois: Auxiliar marcado por gol não dado vira árbitro despercebido a 2ª divisão do RJ


Foto: globoesporte.com
O estádio Jair Toscano de Brito estava praticamente vazio, porém, com os predicados de um iminente palco de jogo da Série B do Campeonato Carioca. O público presente era barulhento, nada amistoso à arbitragem e ao adversário. Vendedores berravam tanto para encontrar clientes que rivalizavam com os gritos da torcida. Pais, mães e filhos usaram a tarde da última quarta-feira como programa familiar, afinal, o tempo chuvoso não recomendava curtir as agradáveis praias de Angra dos Reis. Naquele dia, o time da cidade, de mesmo nome, receberia o Goytacaz. A primeira partida de Rodrigo Castanheira em 2015, o auxiliar que, um ano antes, não validara gol de Douglas, mesmo com a bola tendo ultrapassado a linha em 33cm, justamente em um clássico, entre Vasco e Flamengo. Pois o homem do apito entrou em campo, teve atuação perfeita, capaz de expulsar um atleta da equipe da casa, e saiu dele 90 minutos depois como se fosse apenas Rodrigo Castanheira. Despercebido. Um desconhecido. Algo bem diferente do que viveu a partir de 6 de fevereiro de 2014. Tudo o que passou, a “tempestade”, como define o período, com ameaças, dúvidas quanto à própria capacidade, a obrigação em fazer exames, a certeza em retomar a carreira, o apoio da esposa e dos filhos, virou passado. Rodrigo Castanheira faz questão de ser apenas Rodrigo Castanheira, o juiz, o marido, o pai, o professor de Educação Física. Nem de longe quer, aceita ou teme ficar marcado como o árbitro que não deu o gol de Douglas.  
É difícil falar com Rodrigo sem citar, lembrar o 2 a 1 do Rubro-Negro sobre o Cruz-Maltino pela Taça Guanabara. Pois recordamos: falta para o Vasco. Douglas e Fellipe Bastos estão postados. O meia corre, bate, a bola acerta o travessão, quica dentro do gol de Felipe e sai. Gol. Claro. Legítimo. São 33cm que separam a bola da linha do gol. O auxiliar de linha, à época, estava bem posicionado. Distante cinco metros. Não validou e o árbitro principal Eduardo Guimarães mandou o jogo seguir. Foi o começo de uma tremenda confusão. Que saiu das quatro linhas, envolveu polícia e até hoje deixou marcas. Uma delas é percebida logo ao começar a conversa:  
- Não quero ficar refém de um lance. Foi um erro. Isso passou. Quem nunca errou? Vivi uma tempestade e não quero viver isso de novo.   
A defesa se explica. Rodrigo teve o endereço vazado por um torcedor vascaíno no Twitter. Foi ameaçado - a Polícia Civil abriu investigação, inclusive. Temeu pela segurança da esposa e dos filhos, uma menina de oito e um menino de dois anos, cujos nomes ele evita revelar. Teve de se isolar. Deixou a casa onde mora, no Rio, por uma semana, no feriado de Carnaval. Virou até fantasia da festa popular, com o adendo nada amistoso: um óculos, um sugestivo “apelido” de cego. E demorou para retomar a rotina.  
Mas o que ele fez? Como conseguiu? Para entender é preciso separar o dentro do fora de campo. Por determinação do presidente da Ferj, Rubens Lopes, Rodrigo só votaria a trabalhar após passar por uma bateria de exames, todos bancados pela federação. Os fez. No Rio e em São Paulo. Um oftalmologista não encontrou nenhuma deficiência. Um neurologista, idem. E um psicólogo o acompanhou por um mês. Foi o período em que demorou para voltar a ser quarto árbitro, em duas oportunidades, ainda em 2014. Ou seja: não houve punição, posição tomada pelo presidente da Coaf, Jorge Rabello, que o conhece desde o ingresso no curso de arbitragem, em 2002.  
O que aconteceu foi que ultrapassou o limite da capacidade do olho humano
Rodrigo Castanheira
- Fiz todo o procedimento correto. Me posicionei, girei o corpo. Mas não vi a bola ter passado toda a linha. Tanto que falei "segue, segue, segue". O que aconteceu foi que ultrapassou o limite da capacidade do olho humano. Há estudos que mostram que o milésimo de segundo do piscar dos olhos interfere na visão. Foi isso. A Ferj e a Coaf entenderam isso. E eu agradeço. Seria muito fácil punir, me afastar. A primeira semana, três ou quatro dias.. foram de muita chateação. De muita cobrança. Gera dúvidas. Dei a volta por cima pois amo o que faço, amo o futebol - recorda.  
Mesmo assim, demorou mais a apitar como árbitro principal. A volta ocorreu, igualmente, na Série B: São João da Barra x São Gonçalo em 16 de abril. Exatamente dois meses depois do erro. Àquela altura, a confiança foi retomada nas sessões terapêuticas. E a forma física havia sido mantida com exercícios. Foram ainda outros oito jogos como juiz, todos do Estadual, entre Série B, Série C, e da Copa Rio, o último entre Angra e Goytacaz.  
- Voltei em um jogo complicado, de estádio cheio. Se eu fosse bem, seria a confirmação de que eu teria superado tudo. Se eu fosse mal, talvez eu me questionasse se eu deveria continuar arbitrando. Graças a Deus, fui bem. Assim como no último, o primeiro de 2015. Me exigiu muito, física e tecnicamente. Arbitragem e o futebol são assim: imprevisíveis e esse é o maior barato - destaca, para completar:  
- Nunca usaram o erro dentro de campo para me desestabilizar. As pessoas que me conhecem, me apoiaram. Os jogadores e os treinadores vêm falar e dar abraço. Dar apoio. Isso é bonito.  
O fora de campo ajudou. Família e amigos apoiaram. Os diretores dos dois Cieps em que dá aula, em Duque de Caxias, de acordo com Rodrigo, tiveram comportamento exemplar. Conversaram, mostraram as coisas boas feitas por ele, bateram na tecla batida por ele em todas as aulas aos adolescentes do Ensino Médio: persistência.  
- Sempre falo para o menino ou para a menina não desistir da realização de qualquer sonho. Para nunca perder a fé. Confiar e Deus. Se tem um plano para a sua vida, por mais que tenha obstáculos, tem de superá-los. A minha aula foi dada a mim. Meu sonho era ser juiz de futebol. E não desisti dele. Por isso, mato um leão a cada dia - acrescenta.  
A atuação do árbitro sempre é analisada em relatório feito por um observador da Ferj. Desde o erro, Rodrigo teve boas avaliações. A julgar pela última quarta, por exemplo, deve repetir a média. Foi perfeito. Distribuiu seis amarelos. E um vermelho, direto, ao zagueiro Robson por falta violenta, um carrinho lateral com os dois pés em um atacante adversário. Decisão que revoltou a torcida local. E os jogadores. O juiz foi cercado, mas manteve a calma. Teve sorte, é verdade, pois, mesmo com a demora da entrada do policiamento, nada de grave ocorreu. Mas se ninguém lembrou do erro no Clássico dos Milhões, não escapou de críticas de torcedores. Sempre no caráter de pressionar.  
- Apita direito ou vou furar o pneu da van! (que levaria a arbitragem de volta ao Rio após o jogo). 
- Seu juiz, meu time tem de subir e você não pode atrapalhar!  
Claro que elas não surtiram efeito. Rodrigo se posicionou bem. Sempre correu na diagonal. Não permitiu violência. E olha que as disputas de bola foram ríspidas. Soube conversar o orientar os atletas em campo. “Normal, normal” era a maneira de informar que não houve falta, “segura, segura” para chamar a atenção com o excesso de faltas, “não adianta caminhar” para coibir a clássica andada da barreira. Resultado de preparação. Ao saber da escala, estuda os times. Sempre chega três horas antes da partida. Para conhecer o local de trabalho. Se concentrar. Antes de entrar em campo, reza. E, ao dar o apito inicial, faz o sinal da cruz. Tudo para ter um bom trabalho. Para ter uma avaliação, como feita pelo treinador do Angra, Carlos Alberto Santos:
- Ele foi perfeito. Decidiu os lances com precisão. E expulsou corretamente o meu jogador.
E, claro, para não cometer erros como o do dia 16 de fevereiro de 2014.

Por Globo Esporte

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